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Por que estamos tão cansados? Psicólogos apontam causas e caminhos

Produtividade predatória e acúmulo de atividades são explicações possíveis; entre as alternativas, está a definição de limites

Por que estamos tão cansados? Psicólogos apontam causas e caminhos

Basta olhar para o espelho: o rosto denuncia a exaustão nossa de cada dia. Poucas horas de sono, acúmulo de tarefas e as diferentes pressões do cotidiano empurram a rotina para um abismo por vezes incontornável de estafa e aborrecimento. Mas, afinal, por que estamos tão cansados? Somos, de fato, a geração mais exausta a passar pela Terra até hoje?

Filósofos como o coreano Byung-Chul Han até cunharam expressão para o caso. Pertencemos à sociedade do cansaço. “Ele traz o conceito de que vivemos em uma sociedade do desempenho, em que tentamos constantemente atender às demandas e expectativas externas, pressionando-nos em busca do sucesso”, situa a psicóloga Milena Cruz Raposo.

Para ela, fomos aprendendo a nos cobrar cada vez mais, assumindo responsabilidade individual pelos fracassos. “Vejo um reflexo da consolidação de um discurso que associa o sucesso pessoal e profissional meramente ao esforço individual. Isso acaba construindo uma narrativa de que devemos ser produtivos o tempo todo, mas isso é impossível”.

Além disso, há de se considerar que os papéis sociais se acumulam. Não basta, por exemplo, exercer uma única função. É preciso conciliar múltiplas atividades, manter o equilíbrio pessoal e também expor para o outro a própria vida, mostrando eficiência em dar conta de tudo. As redes sociais contribuem com isso, a partir da vitrine de vidas perfeitas e ideais.

“O tempo também se tornou relativo. Antigamente era preciso esperar determinado horário para que as coisas funcionassem; hoje tudo precisa ser o tempo todo. Ficamos 24h online tentando dar conta de tudo. Isso é extremamente desgastante, e a exaustão aparece como sintoma de como nessa sociedade nossos limites são continuamente ultrapassados”.

É um dos modos de como a Psicologia encara a própria definição de cansaço: quando nossos limites atingem um pico. Igualmente, pode representar desconexão com o momento presente a partir do instante em que somos engolidos por diferentes demandas e não conseguimos nem sequer descansar e aproveitar o ócio. 

A longo prazo, a exaustão pode reduzir a capacidade do cérebro de regular emoções, tomar decisões e manter o foco, levando a comportamentos impulsivos e desconectados com os valores pessoais. “Vejo que o cansaço tem sido cada vez mais naturalizado; no entanto, ele é um alerta do corpo para o esgotamento e o adoecimento”, sinaliza Milena.

As estatísticas do cansaço

Números ajudam a quantificar o panorama. Pesquisas da empresa Deloitte sobre burnout – expressão em inglês para distúrbio emocional causado por estresse crônico no trabalho, resultando em exaustão física e mental – revelam que 77% dos profissionais já passaram pela situação. 

Na outra ponta, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre saúde mental informam que brasileiros passam 9h32 por dia conectados à internet. Em termos práticos, é como se passássemos 26 anos ininterruptos de vida em frente a telas.

“Normalizamos esse cansaço como virtude”, percebe o psicólogo Lucas Freire.

 

77%

dos profissionais já passaram por burnout, segundo pesquisa da Deloitte

 

“Tem gente se gabando de dormir quatro horas por dia, competindo pra ver quem responde e-mail mais rápido no domingo, transformando exaustão em identidade, como se fosse prova de valor, relevância e existência”.

Essa fina observação do entorno motivou o estudioso a escrever o livro “Exaustos: Imaginando saídas para o cansaço diário”.

Publicado pela Buzz Editora, é fruto da percepção dessa epidemia silenciosa de estafa. Nos últimos 20 anos atuando com desenvolvimento humano em empresas por todo o Brasil, Lucas começou a notar um padrão perturbador: pessoas cada vez mais eficientes, produtivas, conectadas... e simultaneamente mais exaustas, ansiosas e vazias.

 

Legenda: Capa do livro escrito pelo psicólogo Lucas Freire.

Foto: Divulgação.

 

O clique final para a obra veio com a paternidade. Quando o filho, Leo, nasceu, algo nele se rompeu, ou melhor, se reconectou. “Pela primeira vez em muito tempo, toquei o chão da vida com a palma da mão. Vi meu filho gargalhar sem motivo e lembrei que isso, por si só, já é motivo suficiente. E me perguntei: ‘Quando foi que perdemos isso?’”.

O trabalho, assim, é fruto dessa inquietação – espécie de resposta a algo que ocorre há décadas, mas que se intensificou brutalmente nos últimos anos. E vem amparado por amplo estudo. Lucas recorre à neurociência, à Psicologia Positiva e até à Filosofia, desde Sêneca e o estoicismo até Gilles Lipovetsky e a análise da hipermodernidade, para discutir conceitos.

 

Legenda: Lucas Freire é autor de livro sobre cansaço e caminhos possíveis para lidar com ele.

Foto: Arquivo pessoal.

 

“Mas minha maior fonte de dados são as milhares de pessoas que já me conectei em palestras, treinamentos e programas nos últimos 20 anos. São essas conversas, esses relatos, essas lágrimas e risos que dão carne e sangue aos números”.

Perdemos a leveza?

Para responder a esta pergunta diante de um turbilhão de cenários negativos, a psicóloga Milena Cruz Raposo pondera: cada vez mais perdemos a capacidade de contemplar o mundo real, a vida, e entrar em contato com o que há de mais profundo nela. Então, sim, caminhamos para uma estrada menos leve.

“As redes sociais nos atraem com ampla variedade de memes e vídeos engraçados, mas não é apenas a isso que temos acesso quando entramos nela. Entre vídeos curtos para entreter, entramos em contato com diversas tragédias que ocorrem pelo mundo a partir de padrões inalcançáveis e incentivo ao consumo desenfreado”.

São algoritmos capazes de nos mostrar que não somos ou temos o bastante, que somos insuficientes, mesmo que de forma indireta. “Vemos um mundo artificial: ninguém compartilha nas redes as partes difíceis da vida, de forma que construímos um viés de que algumas coisas acontecem apenas conosco”.

 

Na imagem, um homem com cabelo escuro e barba por fazer está sentado em uma mesa de escritório, parecendo exausto. Ele está vestindo uma camisa social branca e tem a cabeça apoiada na mão esquerda, cobrindo um dos olhos. Seus olhos estão fechados e ele parece estar descansando ou esfregando-os devido à fadiga. Um monitor de computador está em primeiro plano, parcialmente fora de foco. O fundo, também desfocado, mostra um escritório com prateleiras de madeira e uma planta. A iluminação é suave, com uma fonte de luz brilhante na parte superior central.

Legenda: Exaustão pode reduzir a capacidade do cérebro de regular emoções, tomar decisões e manter o foco.

Foto: PeopleImages/Shutterstock.

 

Além disso, não conseguimos mais sustentar momentos de tédio. Precisamos sempre evitar “não fazer nada”, nos distrair, nos entreter, mesmo que isso signifique olhar diferentes stories no Instagram sem, de fato, prestar atenção no que está sendo visto.

Não à toa, a médio prazo, o cansaço constrói padrões de evitação, procrastinação e desmotivação, dificultando a adaptação a novas situações e o vislumbre para possibilidades de mudança naquele contexto.

Pode levar, por fim, a um distanciamento de valores fundamentais que possuímos, como relacionamentos, espiritualidade, autocuidado, família. Cria-se um ciclo de esgotamento, culpa e vazio.

Lucas Freire completa a ideia ao descrever como o tema é trabalhado no livro de autoria dele. A obra tem duas partes complementares, como uma jornada de reconhecimento e libertação. A parte um, “Reconheça-se nos Cativeiros”, é um diagnóstico. Nela, o autor apresenta o conceito dos cativeiros neurológicos, prisões invisíveis que construímos meta por meta.

 

Na imagem, uma pessoa sentada em uma mesa de escritório está com a cabeça deitada sobre os braços cruzados, apoiados em uma pilha de documentos e pastas coloridas, o que sugere exaustão devido ao excesso de trabalho. Ela está vestindo uma camisa branca e sua mão direita está estendida, pressionando uma calculadora. A mesa é escura e também contém um smartphone, caneta e prancheta. Ao fundo, fora de foco, há uma estante de metal com livros e pastas.

Legenda: Ilusão da multitarefa e erosão da autonomia temporal contribuem para o cansaço.

Foto: David Gyung/Shutterstock.

 

“Mapeio quatro grandes armadilhas da hipermodernidade: a ilusão da multitarefa, a erosão da autonomia temporal, a colonização dos desejos e a atrofia lúdica. E uso personagens, a exemplo de João, Ana, Marcos e Clara, para dar rosto e história a essa exaustão coletiva”.

A parte dois, “O Play Como Antídoto”, é o caminho de saída. É quando Lucas apresenta a ciência do play – não como brincadeira infantil, mas como estado neurológico, emocional e social de liberdade, exploração e presença. 

“Desenvolvo um framework de 12 dimensões do play humano que funcionam como portas de saída dos cativeiros. A metodologia mistura neurociência, psicologia positiva, filosofia estoica e, principalmente, observação direta de milhares de pessoas que acompanhei ao longo de duas décadas. Os temas emergiram dos relatos de quem está vivendo a exaustão na pele”.

Soluções possíveis para o cansaço

O mesmo Lucas Freire elenca passos viáveis e oportunos para lidarmos melhor com a exaustão que insiste em bater à porta. São eles:

  • Criar fronteiras entre trabalho e vida (não física, mas mentalmente);
  • Proteger espaços de inutilidade produtiva, ou seja, aquilo que você faz só porque quer, sem métrica, sem objetivo;
  • Questionar narrativas que você engoliu sem mastigar (“preciso acordar às 5h”, “preciso ser produtivo o tempo todo”);
  • Buscar conexões reais fora das telas e dos algoritmos;
  • Permitir-se o encantamento, aquele estado de espanto diante do mundo.

“É importante desromantizar: não é sobre ‘tirar férias’ ou ‘fazer hobby’. É sobre recuperar um estado de presença, curiosidade e liberdade que é nosso por natureza, mas foi sequestrado pela cultura da hiperperformance”, elucida.

Milena Cruz Raposo, por sua vez, visualiza que não há fórmula definitiva para lidar com a questão. Mas considera que o primeiro passo seja estabelecer limites mais claros entre vida pessoal e profissional. Segundo ela, é fundamental definir espaços e horários distintos para atender às diferentes demandas, em vez de permanecer constantemente conectado. 

“O cérebro precisa de pausas para descansar e identificar em quais contextos é possível, de fato, relaxar. É um esforço constante para construir esse cenário de descanso diante da sociedade em que vivemos”.

 

Na imagem, uma mulher mais velha de cabelos escuros e um jovem de cabelos cacheados e barba rala, ambos de etnia indiana, estão sentados em um sofá verde em uma sala com janelas grandes. A mulher, vestindo uma blusa vermelha e calças pretas, está sorrindo e olhando para o jovem. Ela tem a mão em cima da mão dele. O jovem está sorrindo para a mulher e segurando um livro com a outra mão. Eles parecem ser mãe e filho. O fundo mostra janelas com uma paisagem verde.

Legenda: Buscar conexões reais fora das telas e dos algoritmos é uma das formas de lidar melhor com o cansaço.

Foto: Raushan Films/Shutterstock.

 

Sendo assim, um passo relevante é reduzir o tempo de exposição ao celular e às redes sociais, deixar o celular um pouco de lado, limitar o uso ou diminuir o tempo de consumo de determinados aplicativos. Além disso, práticas de relaxamento, como mindfulness e meditação, podem ajudar a construir momentos de reconexão com o momento presente. 

“Você pode cultivar hobbies realizados offline, como leitura, atividades físicas, colagens, música ou outras formas de expressão pessoal, o que faz mais sentido para você. O autocuidado caminha, muitas vezes, na contramão da lógica vigente, que tende a transformá-lo em um produto ou obrigação. Por isso, é essencial que você compreenda o que funciona para você, individualmente, e isso envolve uma conexão mais profunda consigo”.

 

 

 

 

Escrito por

Diego Barbosa

diariodonordeste

 

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